OS PROCESSOS DE NACIONALIDADE PORTUGUESA AUMENTARAM OU ACUMULARAM?
Desde que apresentou a proposta de alteração à Lei da Nacionalidade, em junho de 2025, o Governo português tem defendido que o país enfrenta um afluxo desproporcional de processos, resultado direto — segundo o discurso oficial — do “facilitismo” das reformas anteriores.
No Parlamento, o Ministro da Presidência, António Leitão Amaro, declarou que o número de requerimentos de nacionalidade “disparou”, enquanto os pedidos de filhos de portugueses permaneceram estáveis. A narrativa governamental é simples e politicamente conveniente: a lei teria se tornado permissiva, transformando a nacionalidade portuguesa numa via rápida para o passaporte europeu.
Entre números e narrativa: quando a estatística serve ao argumento político
os dados falam: aumento e paralisia caminham juntos
A realidade revela-se bem mais complexa — e menos confortável para o argumento político.
Os dados oficiais demonstram que os pedidos de nacionalidade efetivamente cresceram, mas também se acumularam de forma alarmante, revelando uma administração asfixiada, incapaz de acompanhar a procura que ela própria estimulou.
Nos últimos dez anos, os pedidos de nacionalidade portuguesa aumentaram 46%, enquanto o acúmulo de processos pendentes cresceu 944% — um contraste que evidencia o desequilíbrio entre a procura social e a resposta administrativa.
Em 2015, registavam-se 194.794 pedidos e 49.361 pendências; já em 2025, apenas no primeiro semestre, foram 121.460 novos pedidos e mais de 515 mil processos em espera.
O número de deferimentos manteve-se praticamente inalterado, situando-se em torno dos 200 mil por ano, o que demonstra que a capacidade de decisão do Estado estagnou enquanto a procura aumentava.
Em suma, os números traduzem duas verdades simultâneas: houve, sim, crescimento real na demanda pela nacionalidade, mas o aumento exponencial das pendências revela uma incapacidade sistémica de gestão e conclusão processual.
o paradoxo: mais pedidos, menos decisões
É inegável que ocorreu um aumento genuíno de requerimentos — sobretudo entre estrangeiros residentes e descendentes de judeus sefarditas, cujo volume atingiu o auge em 2022.
Todavia, esse acréscimo não foi acompanhado pela mesma evolução nas decisões.
Entre 2020 e 2024, o número de pedidos oscilou entre 228 mil e 277 mil, enquanto os deferimentos permaneceram praticamente constantes e as pendências se multiplicaram, atingindo meio milhão em 2025.
O sistema, portanto, recebe cada vez mais, decide cada vez menos e acumula indefinidamente.
A estrutura administrativa — e em particular o Instituto dos Registos e do Notariado (IRN) — não acompanhou o crescimento demográfico nem a complexificação jurídica que a própria política de nacionalidade provocou.
Trata-se de um fenómeno de inércia institucional: o Estado cria o direito, mas não assegura os meios para o seu exercício.
Um sistema sem meios precisa de leis mais duras ou de estrutura?
Durante as audições parlamentares de 11 de setembro de 2025, o IRN reafirmou o diagnóstico do Governo quanto ao aumento dos pedidos, mas reconheceu expressamente a insuficiência de recursos humanos e tecnológicos para dar cumprimento à lei.
O problema, portanto, é estrutural e não normativo.
De nada servirá reformar a lei se a máquina que a executa continuar desatualizada, com pessoal insuficiente e sistemas saturados.
A ironia é evidente: o Estado discute endurecer as regras de acesso à nacionalidade, quando o verdadeiro entrave reside na sua própria ineficiência operacional.
Em vez de corrigir falhas de gestão, prefere-se restringir direitos, numa tentativa de mascarar a incapacidade de decidir em tempo útil.
CONCLUSÃO
Os processos de nacionalidade portuguesa aumentaram e acumularam — simultaneamente e em proporções diferentes.
O Governo prefere chamar-lhe “explosão de pedidos”; o IRN fala em “sobrecarga”.
Mas o nome pouco importa: o que existe é um colapso de gestão, disfarçado por um discurso de rigor e mérito administrativo.
A nacionalidade portuguesa transformou-se, paradoxalmente, no direito mais solicitado e no mais moroso do país.
E, enquanto se debatem prazos, vínculos e princípios constitucionais, o cidadão — português ou estrangeiro — permanece refém de um sistema que não decide.
No final, o problema não está na lei — está na fila.
E, ao ritmo atual, a fila só tende a crescer… junto com o discurso de que “a culpa é dos pedidos”.